A correria nos põe em movimento.
Factual ou fictício, a gente nunca sabe. Mas as coisas rodam sozinhas em seu
eixo ou louquíssimas nos lugares mais inesperados. No meio do barulho
silencioso de Garanhuns, com um temível sentimento de esquecimento urgente - o
mesmo que só dá trégua durante o Festival de Inverno - e um deserto humano
quase incompatibilizado, a roda parece ganhar cada vez mais força. Os acordos
implícitos permanecem implícitos, os explícitos vez ou outra se escondem. E a
roda continua. A roda é o centro. Fora da roda, fora da época de se estar 'fora
da roda', uns poucos. Pouquíssimos, que se arriscam voluntariamente à sair de
casa para acompanhar algum acontecimento. E quando, fora da roda, aparece um
espetáculo como 'Dama da noite', o que pode acontecer? Claro: quem está dentro
da roda quer engoli-lo para dentro. Era noite de casa cheia. Ônibus escolares
vomitando estudantes aos montes - minha primeira pergunta era se todo aquele
pessoal queria estar ali, ou veio obrigado. A roda se movimentando, e eles no
movimento da roda, sem nem saber que estão na roda. E muita gente que soube do
espetáculo na divulgação em rede social, ou boca a boca. Teatro lotado. Era
hora de ela subir no palco. E quando a dama sobe, só tem ela. Não pelo
monólogo, mas pela atenção. Pela excentricidade da dama. Ex-centricidade. Sim,
já fora da roda. Pra quem não conhecia o texto do Caio Fernando Abreu, ou quem
conhecia só pelos recortes de autoajuda que mutilam sua literatura em tempos de
facebook, não tinha melhor apresentação.
E o Caio parecia estar ali, do meu
lado, na primeira fila. Maravilhado. A sensibilidade da direção de Pacheco Neto
saltava aos olhos. Só quem conhece verdadeiramente o texto, quem vive e revive
o conto do Caio poderia transpô-lo para os palcos com tanta sensibilidade e
amor. Pacheco entrega ao público mais do que a transposição de duas linguagens
distintas: entrega uma obra de arte, naquilo que ela tem de criação -
desestabiliza o boy que ouve a plateia, corrói aos poucos o centro subjetivo no
qual estamos inseridos. O texto do Caio aliado à sensibilidade de Pacheco
denuncia a precariedade da nossa experiência de vida. A dama da noite encarnada
por Marcelo Francisco nunca fora tão humana, tão palpável, tão próxima. As
expressões, jeitos, viradas, vozes de Marcelo pareciam ser de alguém que estava
ali em carne viva. Como se sentisse tudo aquilo pela primeira vez. A dama
debochada, decadente, irônica, devastadora. O ícone do Caio Fernando, luxúria e
altivez doloridas a cada palavra, tem em Marcelo uma existência pesada,
desterritorializante - como a experiência da leitura. As músicas iam deslizando pelo corpo da dama.
'Fracasso' de Dalva, saudosa Dalva, na voz da dama, rasgou o tecido do
sentimento. Aquele tecido garanhuense que nos faz frios, quentes só por dentro,
intocáveis. Era inevitável não ser tocado pelas músicas, pelo espetáculo. A
'dama da noite' se fundiu com cada pessoa. Vai ser acompanhada todo dia, no
meio da correria, até por quem vive a roda. Vai ficar aquela sensação, aquela
lembrança da 'coroa porra-louca' que falou sobre vida, morte, sexo, drogas e
tanta coisa mais, em algum momento da vida. Vai se desvanecer a imagem, um dia
talvez. Mas nunca o afeto. (texto: crítica de Matheus Rocha)
Sobre o autor: Matheus Rocha participou de vários concursos literários do
brasil ficou entre os cinco vencedores
do I Concurso Literário Lara Cartonera. Um dos finalistas da Ação Cultural
Inverso do Avesso, patrocinado pela equipe da Poeme-se e do Jornal Plástico
Bolha. Bem como entre as 12 melhores do
4° Concurso Internacional Poesia Urbana, patrocinado pelo Centro Universitário
de Brusque – UNIFEBE que será divulgada
e entrará em circulação por outdoors em quatro cidades de Santa Catarina -
Brusque, Guabiruba, Nova Trento e São João Batista.
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